domingo, 24 de junho de 2007

About a girl I love

Que som é que faz uma pessoa que amas, quando sentes que se pode ir embora?

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Episódio VIII (Ah pois!)

O homem agitava a mão como se se tivesse queimado no lume.
Contava histórias da garotice nos tugúrios de Xabregas. Iam-lhe vazando um olho, ah pois, ah pois…, eu e o meu irmão, zuca!, p’ra casa! Ai não, ai não!. Abanava a cabeça, a condescender o passado, e o corpo balançava descoordenado na cadeira.
As lembranças de infância soltavam-se primeiro sob a forma de interjeições e depois narrava-as numa fala arrastada, por vezes tão imperceptível que delas ficavam umas frases soltas a compor uma história sem nexo. Ah pois, ah pois!, rematava sempre, antecipando-se às expressões incrédulas dos ouvintes. Quando ria escancarava a boca funda e mostrava os poucos dentes cinzentos. Depois, zás, deram-lhe uma facada, zum, e pumba!, ficou logo ali. Logo ali! Ah pois! E nós, ala p’ra casa! Ufa! E arfava e narrava tudo como se fosse um filme de ficção e os gestos quase o desequilibravam da cadeira. Depois, com jeitinho, pedia fiado mais uma cervejinha.
O Sr. António meteu mãos à obra logo cedo, tão cedo que aos quinze anos já era um rapaz com mãos de homem, grandes e nodosas, ásperas como lixa. Também não andava para aí a tocar pele fina, ai não, aí não! E aos dezoito, quando trabalhava numa obra, desequilibrou-se e veio parar cá abaixo. Pumba!, cinco andares! E a vida passou-lhe a grande velocidade, toda de uma vez só. Arre! É obra! E agitava a mão como se se tivesse queimado no lume.
Três anos a dormir sem abrir a pestana. Acordou aos vinte e dois. Ah pois, ah pois! De volta a Xabregas toca de improvisar um poiso porque o seu já era, o que era natural pois ninguém teve esperança no seu regresso.
Mais tarde demoliram o que já estava em ruína e realojaram o Sr. António num bairro de tijolo e cimento, e com ele, a invalidez, a mãe, o irmão, a cunhada, a sobrinha. Eia! Com elevador e tudo! Chii! Botões queimados ao segundo dia.
E os condóminos fechados, indignados com a nova vizinhança, desataram numa lufa-lufa de abaixo-assinados. Ai não, ai não! Essa agora! Era o que faltava! Andamos nós a pagar balúrdios! Balúrdios! Ah pois, ah pois!
O Sr. António não tinha vivido grande coisa mas existia há muito. Uma longa existência pelos cafés com a pensão magra no bolso. Queria dar uma mãozinha. Oh Sr. António, não se mace.
Então uma conversinha, aqui com o companheiro. Oh Sr. António, não me mace os clientes.

De mansinho, atrevia-se a pedir fiado mais uma cerveja, fresquinha! Oh Sr. António, ainda não chegámos a meio do mês e já está a pedir fiado. Como é que pensa pagar isto tudo?
Chiii…
, dizia mostrando os poucos dentes cinzentos. Depois olhava em volta a buscar compincha e agitava a mão como se se tivesse queimado no lume.