sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Episódio XIII

(A mensageira)

A mensageira passava mensagens. Ouvia coisas durante toda a semana e depois passava as mensagens. E a mãe ouvia. Lia coisas durante toda a semana e depois passava as mensagens.
E a mãe ouvia e perguntava:
— E quem disse isso?
E a mensageira respondia:
— Oh, é de um poeta de trazer por casa.
— De quem? — voltava a mãe.
— É de um poeta que trago por casa.
— Qual poeta? — perguntava a mãe.
— De um poeta que se faz trazer pela minha casa. — respondia a mensageira.
— Ah. — soltava por fim a mãe.
Aconteceu que a mãe esteve um mês fora em viagem e a mensageira não teve a quem passar as mensagens. Quando a mãe voltou, a mensageira tinha tantas mensagens para passar que foram precisos dois dias e duas noites para o fazer. A mãe, que chegara cansada da viagem, teve de ouvir todas as mensagens e começou a queixar-se das costas.
A mensageira resolveu fazer-lhe uma massagem e a mãe ficou logo boa.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Episódio Único

(Humor d’irmãs)

Duas irmãs tinham um humor singular.
O humor destas irmãs era tão invulgar que não havia mais nenhum como o delas. Tinham, por isso, um humor raro.
Ou melhor, era um humor mais raro do que as coisas raras. Porque as coisas raras são invulgares mas não são únicas, são apenas uma raridade, o que quer dizer que existem em muito pouco número.
Ora o humor destas irmãs era mais do que raro. Era único. O que o tornava verdadeiramente universal, uma vez que o único contém o raro mas o contrário não se verifica.
E as irmãs humoravam, humoravam, mas ninguém entendia o seu humor. Porque o humor destas irmãs era diferente de todos os outros.
Era mais do que raro, era um humor único.
E exactamente por ser único, ninguém se apercebia da sua singularidade. E então as irmãs humoravam, humoravam. E ninguém compreendia ou sequer se apercebia. Porque o humor único é a excepção das excepções e em geral são precisos mais do que um humor iguais para se convencionar, e por isso entender. Por exemplo, os humores raros são convencionados raros porque se entende a sua raridade. Já o humor único, dado o seu carácter excepcional, não se pode categorizar e por isso não se entende, exceptuando as duas únicas pessoas que o têm. E para haver um humor único são necessárias duas e apenas duas pessoas. Se existirem duas e apenas duas pessoas, elas poderão então humorar um humor único. E estas duas irmãs eram precisamente essas duas pessoas.
E então humoravam, humoravam. Humoravam-se uma à outra porque mais ninguém entendia o seu amor.
E as irmãs, vendo que ninguém se apercebia, desatavam a rir-se.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Episódio XII

«É uma grande vaca! Essa grande vaca estúpida e tosca!» O pianista cuspiu-se sem querer e correu a limpar-se.


A bailarina chega sempre com um quarto de hora de atraso, atravessa o estúdio na diagonal, atira com a sacola para um canto e verifica o telemóvel. Vem sempre de preto e traz uma garrafa de plástico com uma bebida azul incandescente. É baixa e condensada. Os braços pendem-se-lhe do corpo e quando caminha fazem um movimento giratório em torno do tronco. Tem umas mãos pequenas e uns dedos muito curtos, muito abertos e esticados. A bailarina tem um ar robótico e tosco. Quando se olha no espelho, experimenta umas poses severas e devolve ao seu reflexo uma forma bruta, mal talhada. Como o reflexo não é de fiar, atira-lhe, porém, expressões heróicas, às vezes até provocadoras, quando põe os olhos agudos.
O pianista, por sua vez, tem os olhos muito pequenos, tão pequenos que são quase insignificantes, como se estivessem a ser sugados pela própria cara ao ritmo de um adágio.
O pianista quando toca um tango procura acertar o compasso da música com os movimentos de cada bailarina. O corpo da bailarina tosca movimenta-se com grande rapidez. Ela é tão veloz que se antecipa ao próprio som. O pianista corre quase sempre a apanhá-la e deixa as outras fora de ritmo. Mas a bailarina tosca consegue acabar a dança antes mesmo da música se extinguir. Aperta os pés em quinta e cristaliza. O reflexo do espelho revela a sua pose altiva ou tosca. Depende de quem o olha.
O pianista derrotado contrai uma cara ligeiramente obscura e enquanto o faz calca os pedais do piano como se não soubesse para que servem. Depois curva-se e esfrega uma sujidade qualquer na última oitava.
A bailarina tosca nunca olha para o pianista. É como se ele não existisse. Ela sabe que se fizer uma pose de preparação a música há-de soar, uma vez que soa sempre que ela se põe naqueles preparos. Por isso, o pianista é como se não existisse de facto. Até porque raramente se ouve o pianista falar e quando fala é imperceptível e os seus olhos desaparecem completamente. Já aconteceu o pianista dirigir um pequeno comentário, ou pelo menos assim pareceu, à bailarina tosca. Mas a bailarina tosca não ouviu porque o pianista é imperceptível. Nesses momentos, ela estremece apenas a cabeça, como se suspeitasse qualquer coisa, mas continua inânime encostada à barra depois de a ter transformado em balcão.
Por cima do piano está pendurado um grande relógio e por volta das 20.15 o pianista é mandado embora. Mas o pianista não vai e toca ainda umas mazurcas, gira a cabeça para as bailarinas mas estas continuam pregadas ao chão com as mãos nas ancas e não arredam.
A música deixa finalmente de soar embora ninguém saiba dizer ao certo quando. E ninguém vê o pianista desaparecer porque ele é imperceptível.
As bailarinas deixam-se ficar a levantar as pernas até onde podem e a trocar olhares com os seus reflexos no espelho. Uma delas, aliás, parece perdidamente apaixonada.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Episódio XI

A grande porta verde do antigo palacete está sempre empenada. Na entrada, por detrás de um balcão alto e cinzento, surge a cabeça da Ângela encimada pelo vão da escadaria principal. E a Ângela, debruçada sobre o telefone, diz: «Bom dia sôtora!». Cumprimenta todos os dias levantando os olhos e colocando-os sobre o balcão. Depois o telefone toca e não pára de tocar o resto do dia. Com os olhos sobre o balcão, põe o auscultador na têmpora.
A Ângela, quando sai de trás do balcão é sempre por pouco tempo. Geralmente lança-se numa corrida de muitos passinhos porque a saia lhe estrangula os joelhos.
Quando foi preciso fazer obras na recepção, mudaram a Ângela provisoriamente para uma sala. Arranjaram-lhe uma mesa para substituir o balcão e ela levou consigo o telefone. «Bom dia sôtora! O sôtor está ao telefone, vai ter de aguardar um bocadinho», diz a Ângela de busto à mostra. Estava desorganizada, nunca mais acabavam as obras.
Um dia surpreendi a Ângela a olhar provisoriamente pela janela. Ninguém tinha telefonado.
De repente levantou-se e fez a sua corridinha apertada para transmitir uma mensagem. Vestia calças mas a saia ainda lhe estrangulava os joelhos.

Dois escritos de Daniil Harms

Uma Hissstória

Era uma vez um homem chamado Semiónov. Aconteceu que foi passear e perdeu o lenço de bolso. Semiónov começou a procurar o lenço e perdeu o chapéu. Começou a procurar o chapéu e perdeu o casaco. Começou a procurar o casaco e perdeu as botas.
- Irra - disse Semiónov -, assim vou perder tudo. É melhor ir para casa.
Semiónov foi para casa e perdeu-se.
- Não - disse Semiónov -, é melhor sentar-me e esperar.
Semiónov sentou-se numa pedra e adormeceu.

*
Antes de entrar em tua casa vou bater-te à janela. Vais ver-me à janela. Depois entro em tua casa e vais ver que sou eu. Depois entro em ti e ninguém, além de ti, me verá ou reconhecerá.
Vais ver-me à janela.
Vais ver-me à porta.

Harms, Daniil, A Velha e Outras Histórias, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007.