terça-feira, 21 de outubro de 2008

Episódio XVII

Hoje acordei febril mesmo depois de uma longa noite de sono. E quando temos febre os sentidos parecem sofrer de uma sensibilidade ampliada. Sobretudo os ouvidos, que apuram os sons graves e agudos desprezando toda a escala de sons intermédios que lhes confere harmonia. Dentro do nosso cérebro ecoa o som agressivo permeado por um equalizador desregulado. Ah, o mar. A minha voz rouca e desafinada soa apenas dentro da minha cabeça, vibra pelo corpo em vez de se dispersar pelo ar, de se extinguir nele. Na cantina tudo grita, copos de vidro, pratos de louça, talheres e tigelas de alumínio. Os azulejos brancos e todos os suportes de metal. As dezenas de bocas que comem e falam ao mesmo tempo. A única janela aberta enquadra regularmente o barulho dos carros que passam.
Quando transpus a muralha e espreitei a paisagem que se estendia longe e baixa, vi as pequenas povoações brancas no cimo das planícies e os campos rectangulares no fundo dos vales. Um nevoeiro translúcido tornava tudo silencioso e nada se movia na manhã de domingo. Apenas um tractor da lavra girava um grande cilindro num terreno vermelho. Com extraordinária lentidão, executava um rectângulo cujo contorno era da cor do pó. Fiquei a observar a precisão geométrica do tractor e o seu rasto lento a consumir o vermelho da terra. Outras pessoas pararam também e seguiram o tractor com os olhos sem, no entanto, perceber o que as atraía tanto. Depois começaram a falar e eu fui espiar o tractor para longe delas.
Hoje, com grande esforço, procurei ensinar a imaginar o espaço e os objectos que nele existem. Tentei mostrar como era possível conhecê-los mentalmente. Consegui ainda consolar as frustrações e as grandes iras que assolam todos aqueles que experimentam o esforço mental. Os outros permanecem ignorantes e cheios de bonomia.
Todos os amantes, quando se encontram em fase de explosão, imaginam espaços resguardados ou clandestinos para explodir. Não que se preocupem com os danos que possam vir a causar em seu redor mas simplesmente não querem partilhar com mais ninguém o brilho de um violento incêndio. Para isso, precisam de se fazer à estrada; seguir para longe num carro. Para os amantes, a distância e, por conseguinte, o tornar-se estrangeiro, é fundamental. E então partem, muitas vezes em direcção ao mar. Escolhem o mar porque aí a linha do horizonte é fina e extensa, de perder de vista. Outras vezes, mar e céu fundem-se numa mancha azul uniforme. Estas são por isso, duas situações naturais onde os seus olhos podem, enfim, derramar-se com infinita e absurda liberdade.
Quando os amantes, depois da fuga, sabem que têm de voltar, entregar-se à autoridade da rotina e responder pelos seus actos, adiam a rendição até ao último instante. Os momentos que a antecedem são de uma liberdade comprometida. É como se o cilindro do tractor, que outrora rolara lentamente, extinguisse o último pedaço de terra vermelha com o deslizar eficaz e cortante de uma faca.
Os amantes pisam a areia lisa junto ao mar e enfiam umas pedras nos bolsos, fingindo escolher com critério as de grande beleza. Como não podem ficar, resolvem levar qualquer coisa concreta e palpável como uma simples pedra, um pedaço de rocha, um seixo, um calhau. Qualquer coisa resistente, dura, difícil de destruir. Qualquer coisa das entranhas da terra. Eis que então, não podendo mais contrariar o tempo, decidem voltar. Quando chegam, vão directamente para a cama e rendem-se à profundidade do sono.
No dia seguinte, geralmente acordam doentes.