quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Episódio XVIII

Era uma vez um homem muito recto. Usava habitualmente um casaco azul-escuro com botões doirados e sob ele o seu corpo recto. Os ombros deste homem assumiam formas tão rígidas que o casaco parecia permanentemente pendurado num cabide.
Era um homem de pensamentos rectos, bem organizados em compartimentos cerebrais de traçado ortogonal. A sua rectidão era inabalável fosse qual fosse a circunstância; nunca uma pessoa menos recta ou um caminho sinuoso lhe alterara a estrutura dogmática do espírito. «Enquanto restar um só homem com a sua rectidão…», pensava.
E a vida deste homem corria recta pelo tempo.
Até que um dia, uma mulherzinha de aspecto trágico cruza o seu caminho e o homem apaixona-se perdidamente por ela. Apaixona-se pelo seu olhar agudo e pelo seu corpo dinâmico. E o homem sentiu imediatamente uma grande vontade de protegê-la na rectidão do seu pensamento; de dominá-la na sua trama constante. Como tinha pensamentos menos rectos por causa desta mulher, não confessava a sua paixão a ninguém, nem mesmo a si próprio. Porém, a terrível inquietação que a mulher lhe provocava fê-lo tentar uma aproximação. Mas sempre que encarava a expressão trágica do seu rosto, ficava de tal maneira perturbado que emudecia. Quando emergia desse estado, os seus ombros rectos descaíam ligeiramente e o homem sentia-se verdadeiramente humilhado. Afinal de contas, aquela mulher satirizava a sua rectidão.
Foi por esta razão que o homem decidiu não procurar mais a mulher e estava determinado a afastar aquela figurinha dramática dos seus pensamentos. Mas ela voltava, como um fantasma picante, e o rosto geométrico deste homem tornava-se sombrio e pouco rigoroso. De noite começou a ter dificuldade em dormir e não tardou que os seus pensamentos fossem perdendo clareza. Isso incomodava-o profundamente, depois enfurecia-se e por fim perdia por completo o sono.
Certa noite de insónia, o homem que estava esgotado, acabou finalmente por adormecer. E sonhou.
Sobre um grande palco, viu a mulher de aspecto trágico agitar-se em poses de grande intensidade dramática. O homem correu até à bacante e interrompeu-lhe os gestos imobilizando-lhe os braços.
«O que queres?», perguntou a mulher pausadamente como se declamasse para um anfiteatro cheio.
E o homem, abandonando os seus modos rectos, sacudiu a figura num ímpeto furioso. Depois sentiu um cansaço pesar-lhe nos ombros, largou a mulher e ficou-se prostrado. A mulher avançou então para o homem como se se preparasse para executar um golpe impiedoso, mas em vez disso, encostou a boca ao seu ouvido e sussurrou-lhe durante muito tempo.
O homem, que ficara aterrado, perguntou-lhe:
«Mas afinal que raio de ser és tu?»
«Sou mulher.», disse-lhe afastando-se. «Nada do que é humano me é alheio.»
E o homem desperta.
Nessa manhã, ao contrário de sentir fadiga, o homem experimentava uma grande sensação de alívio. Abriu a porta do guarda-fatos onde um espelho interior começou por reflectir os fatos, depois a janela, o nevoeiro branco e a sua figura de perfil; depois a parede com algumas gravuras de barcos, uma pequena cadeira com roupa e a sua figura a três quartos, e finalmente encarou-se de frente. Escolheu o casaco azul-escuro com botões doirados e vestiu-o lentamente. Subitamente uns caracóis serpentearam no reflexo do espelho e os olhos da sua mulher apareceram baços, cativos dos ombros do homem. Dotada de movimentos eficientes, a mulher deu um puxão seco no casaco fazendo-o encaixar definitivamente no corpo do homem. Quando a mulher desapareceu, o homem ficou novamente a sós com o seu reflexo.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Episódio sem número

A avó acordou e num pequeno papel anotou o seguinte:

Hoje, não sei se por causa da dor que sentia, deitei-me de tarde e dormi cerca de uma hora e sonhei com D..

D. estava a dar uma lição a uns miúdos e fez uma pequena árvore com números. O tronco era o número dos milhões, os ramos eram linhas rectas e curvas e as folhas tinham escritas as unidades, dezenas e centenas, conforme eram maiores ou mais pequenas.

Havia uma ligação entre desenho e linguagem de que não me apercebi bem.