segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Episódio XXII

ao Lugones

(Um amor novo)


Procurámos um lugar na relva, entre arbustos. Uma orla com sol e sombra.
«Aqui está bom!» decidiu a Raquel.
Olhou para mim a procurar aprovação mas antes que eu tivesse tempo de dizer fosse o que fosse, estendeu o casaco e atirou o corpo para o chão verde. Eu averiguei melhor a relva certificando-me de que evitava as zonas estéreis; apalpei um bocado de tapete, o que me parecia mais denso e mais verde, e senti a humidade. Hesitei.
«Senta-te aqui, nesta ponta.» sugeriu-me a Raquel, oferecendo a manga do casaco.
Ajeitei o vestido e preferi sentar-me na relva. Olhei os arbustos em redor e os caniçais. As plumas eram quase brancas sob o sol de verão. Sobre nós caía a sombra rendilhada das folhas, e os pequenos pontos de luz que as atravessavam picavam-nos como num quadro impressionista. Uma rapariga com os cabelos loiros, muito compridos, a cobrir-lhe os braços, espiava-nos por detrás de um loendro florido. Tinha um livro na mão a que dava uso quando eu a surpreendia. Depois esfregava os pés com meias brancas como se se tentasse livrar de um insecto importuno.
«Preciso de um amor novo! É disso que eu preciso!» disse a Raquel, enquanto palitava os molares e olhava as copas altas, as nuvens e depois o céu – não estou certa se por esta ordem. Após um girar brusco de cabeça, olhou para mim e fuzilou-me com um desespero fugidio. E tudo me escapou quando, inesperadamente, atirou uma gargalhada e mostrou a boca escancarada e os olhos, pressionados pelas pálpebras, desapareceram pela cara adentro. A rapariga loira perscrutou-nos por entre os cabelos e pelos interstícios do arbusto.
Tirei da mala um caderno preto e uma lapiseira. Olhei a Raquel deitada e comecei a apontá-la com traços leves numa folha em branco. Os riscos pretendiam ser a sua estrutura primeira e abstracta. Mesmo deitada, a Raquel agitava-se sobre a relva. Procurava conforto com o tronco e esfregava as costas como para matar uma comichão persistente. E palitava, alternando as mãos, não só os dentes. Quando resolvia comprometer-se com uma pose, punha-se a fixar o céu, missão da qual rapidamente desistia para erguer a cabeça e espreitar a sua réplica, ainda indefinida no meu caderno.
«Não páras quieta! Assim não consigo.», disse-lhe, «Acho que não serves para modelo! Como é que queres que desenhe alguma coisa de jeito se não páras quieta? Estás sempre a desconcentrar-me.»
«Pronto, pronto! Assim!»
E voltava a fincar o céu, muito hirta, com o corpo em tensão.
«Também não precisas de ficar nesse estado!»
Em resposta, a Raquel soltava uma daquelas suas gargalhadas estridentes e voltava ao seu estado natural de agitação. Deitada, palitava desenfreadamente e obrigava-me a esboçar tudo de novo. Mal conseguia vincar um traço definitivo da sua figura, esta cedia à curiosidade e puxava-me o caderno para dar uma espreitadela. Eu teimava em dominar aquela agitação e riscava por lealdade ao método. Mas o meu modelo impunha-se a qualquer regra gráfica; insistente, escapava ao rigor de uma composição severa. Aliás, chegava mesmo a dar-me cabo de todas elas. Por isso, não me restava senão riscar desalmadamente, não em perseguição daqueles impulsos vivos que a não deixavam sossegar, mas na tentativa de recuperar a estrutura que considerava infalível.
«Se um acaba tenho imediatamente de arranjar outro! Preciso mesmo de arranjar um amor novo!» disparava, erguendo o busto.
«Espera! Está quieta! É só um bocadinho, não mexas o braço!» pedi-lhe.
«Desculpa, desculpa.»
E esticava o corpo muito direito.
Eu tentava agora ajustar o corpo dela ao esqueleto primordial que assumira para o meu desenho, uma vez que este ganhava já definição. Bem vistas as coisas, eu sabotava a realidade num pedaço de papel, e transformava-a num embuste do tamanho de um A5. Em todo o caso, este era exactamente o tipo de exame que eu recusava fazer naquele momento. Por essa razão, larguei o caderno e corrigi o braço da Raquel, restituindo-o à posição inicial, atrasei-lhe o movimento do cabelo forçando-o a tomar a forma do momento anterior, antes de se ter espalhado pela relva. Em suma, eu não fazia senão contrariar o tempo e obrigar o corpo dela a regressar às poses passadas. É que o desenho ia já avançado e eu não podia simplesmente recomeçar tudo de novo, nem pensar, que raio!, deixem-me pelo menos acabar isto, agora que já está praticamente, pensava. E comandava-a :
«Espera! Está quieta! Está quase, não mexas a cabeça! Larga o raio do palito! Pára de espreitar! Ainda não está porque não páras quieta!».
Pedi-lhe que se imobilizasse, pelo menos, durante um minuto, o que para ela significava uma eternidade penosa.
«Tenho aqui uma comichão…» suplicava-me.
Apesar de tudo, o meu desenho parecia finalmente acabado. Demorei a lapiseira sobre o preto do cabelo e sobre a franja curta sem, contudo, nada acrescentar. Massacrava a folha cheia, com gestos automáticos, tirânicos, cujos resultados revelavam, ao fim e ao cabo, um desenho tão eficaz quanto medíocre. Tal era o rasto que acabara de deixar: infalível porque sem graça e sem vida.
A Raquel puxou-me mais uma vez do caderno com um esticão e exclamou:
«Está maravilhoso!»
Sem saber como, o desenho exigia uma nova perspectiva, à medida que a Raquel o girava nas mãos. Na figura a grafite eu não conseguia distinguir qualquer agitação, nenhuma linha verve. Ninguém poderia supor que aquela figura ria até desfazer a cara.
Aproximei-me da Raquel, peguei no desenho e examinei-o durante um bocado.
«Não, não está bom. Repara», e exibi-lho outra vez, «não podemos sequer pressentir que precisas de um amor novo.»