segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Episódio XXIII

Eu vejo um homem e da sua cabeça escorrem-lhe uns cabelos loiros muito longos. Os cabelos são tão finos que se lhes tocarmos desfazem-se no ar e nos dedos. O homem caminha pesado sobre a neve. Eu não gosto da neve. Dá sono como a morte.

Eu vi outro homem com uns olhos ásperos. Em torno da pupila negra não havia quase cor e uns raios sem brilho esquartejavam a íris em tomos azuis. A calma dos que escondem qualquer coisa acutilante não tem som. Continuo a achar que escolheram mal as cores do inferno.

Eu oiço um homem tocar uma trombeta. E quase parece morrer quando bafeja o final das frases; mas retoma sempre com um ar que tem reservado e que suga do fundo do corpo. O homem sopra com arrogância e às vezes é como se não quisesse dizer se sente dor ou prazer. Não sei se essa expressão indefinida se fabrica. Mas se se fabricasse, este homem ainda teria muito que ensaiar. E então talvez se tornasse tão perigoso quanto as bestas que se sentam para o ouvir ao meu lado.

Eu vejo um grupo de mulheres e todas têm ossos robustos e pernas fortes. Mesmo as de aparência mais frágil escondem um esqueleto sólido, a julgar pelas articulações largas cravadas na pele. Aquelas mulheres são duras de roer.

Eu imagino um homem mas a sua forma escapa-me sempre.

Eu não vejo uma mulher que costumava sentar-se naquela cadeira de baloiço porque a mulher já desapareceu. Há quem defenda que a presença das pessoas desaparecidas se prolonga através dos objectos que usaram. Sendo assim, a mulher desaparecida deveria então aparecer na cadeira. Só que o contrário também se verifica: quando olho a cadeira ela parece suportar um vazio tremendo. Até porque eu raramente lhe dou uso. No desenho passa-se a mesma coisa: depois de riscarmos o papel em branco, não sabemos dizer ao certo se são os traços pretos que inventam formas se os vazios que ficaram por riscar. Algumas regras metodológicas, mesmo as mais cartesianas, dizem-nos que devemos considerar os imponderáveis, as incertezas. Considerando o nosso caso, podemos então afirmar, com clara objectividade, que nem sempre sabemos determinar o que é cheio e o que é vazio.

Eu vi uma mulher que se sentava na cadeira de baloiço e lia livros e alguns tinham dedicatórias. Eu passei o indicador sobre uma delas e tacteei o papel sulcado pela pressão da esferográfica. Tal como a mulher, eu senti o vazio (resolvemos escolher o vazio para escrever com substância) da mão que dedicou com palavras caligráficas um romance dactilografado. E essa mão deixou um rasto de linhas como a superfície do mar picado. Eu fecho os olhos e tento descobrir com o meu dedo de carne sobre qual das palavras foi exercida maior pressão.

Eu sei de um homem e de uma mulher que sabem de coisas extraordinárias. Ambos são sistemáticos, sintéticos, sincopados. Eles cantam e avançam porque a paixão tem destas coisas.

Eu vejo dois homens que perderam o sono e por isso sonham mais tempo acordados. Quando estão esgotados de tão obstinado delírio, descansam os olhos nas palmas das mãos e esperam. Em torno dos olhos destes homens formaram-se círculos persistentes que parecem pinturas de guerra. Mas os olhos, ao invés de se enterrarem na tinta espessa das auréolas, esgueiram-se para fora e contrastam como armas.

Eu vi um miúdo passar por mim e avançar na direcção da montanha. Porque lá em cima o extremo das coisas é de uma violência vertical e os animais são aerodinâmicos e o eco do grito é mais amplo. Eu demorei-me no caminho primitivo onde encontrei os restos de um carro atirados para uma vala. A humidade que ali se fazia sentir começava a corroer os órgãos metálicos.

Eu vi quatro pessoas todas vestidas de preto a passarem na calçada branca. É a morte!, pensei eu. Mas depois corrigi: Não é nada, é desenho!