quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Episódio XIX

(Alinhamento)

Primeira. uma música sobre o deserto americano. Uma música triste, lenta, cheia de afastamento. Faz lembrar longos dias. E soa como eles. Umas limalhas soltam-se, são farrapos de cinzas e giram no ar. São partículas de pó, afinal, porque ficaram suspensas nos longos dias.
Segunda. uma música sobre o amor trágico entre um homem e uma mulher. É sobre um amor obsessivo, violento até. E a tragédia repete-se no refrão.
O homem acabou os seus dias num deserto onde galgou dunas até não suportar mais a caminhada. Quando se deixou cair o vento tratou de o sepultar. A mulher morreu de velha. De velha morreu a velha. Péûmmm mmmm mm, faz a guitarra no fim.
Terceira. uma canção muito bela. Mas não consegue sobrepor-se às buzinas lá de fora, aos motores com arranques frenéticos, ao martelar da chuva nas caixas dos estores. Damo-nos conta de que penetramos mais longe, até onde a água desce, em fuga, sob a forma de lençol. Em sobreposição à canção, ouvem-se agora os vizinhos a bater com as portas. Parece que reservam uma energia violenta para aquela acção. Atiram com elas e o som é poderoso. Mas apesar de abafada, a lengalenga persiste acompanhada por um coro com timbres ondulantes. É uma canção muito bela mas ouvi-la é completamente inútil. As portas continuam a bater sem que se lhes intua a regra rítmica e o chão chega mesmo a estremecer.
É uma canção transparente: através dela ouvimos sons ferozes que nos fazem desejar ainda mais a sua harmonia.
Em todo o caso, a canção é demasiado longa, tem oito minutos e trinta e dois segundos.
Quarta. uma música sobre o desalento. Nada disso, é sobre a derrota. E a seguir à derrota vem um grande alívio porque tudo acabou. Não há nada para lembrar porque já não existe memória. A memória pertence aos vivos e esta é uma música sobre os derrotados, sobre os mortos. E os mortos descansam em paz, ao que parece. E ainda virá alguém para lhes admirar o rosto, como fizeram a Heitor.
5. 2’34’
6. 5’23’
7. 5’08’
8. 3’48’
9. 2’59’