sexta-feira, 20 de julho de 2007

Episódio X (Adaptação do Summertime do Gershwin ou Pequena História de Amor Afinada em Si)

«A vida é sempre boa no verão.» disse ele. «Mas tem estado um vento. Sempre um vento. Olha para aqueles plátanos tão altos. Até parece que se vão vergar.»
«As folhas estão a cair.» disse ela.
Ele tirou-lhe a harmónica das mãos e experimentou uma escala soprando e aspirando as notas com força. Depois contraiu a testa.
«Tens uma harmónica em Si? Porquê em Si?» E continuou a tocar sem esperar resposta.
«Não devias tocar a minha harmónica», disse ela, enquanto ele soprava sem prestar atenção, «não te conheço de lado nenhum. Não se deve deixar tocar a nossa harmónica a não ser que conheçamos…»
«O teu pai que te compre outra. E a tua mãe?», disse tocando logo a seguir mais umas notas. Depois parou e olhou-a com um sorrisinho insolente «É bonita, não é? Então? Não fiques com esse ar de menina chorosa.» Tocou outra vez, com muita força, inspirando e soprando com o fole do peito e a harmónica apertada entre as mãos.

«Um dia», disse ele fazendo uma pausa «quando souberes tocar, vamos à procura de uma plantação de algodão, sem este vento, e aí vais poder mostrar o que sabes. Quando fores profissional. Até lá, vai praticando, mas só ao pé dos teus pais. Não chateies mais ninguém.»
Soprou até soar o tom mais agudo e depois fez uma longa pausa marcando o compasso para o tomar de novo com uma nota arrastada até esvaziar todo o ar dos pulmões.

«No verão, a vida corre sempre bem, não achas?» disse ele.
«Está frio.» disse ela.
«É do vento. Pede ao teu pai para mandar parar o vento.» Bateu com a harmónica na palma da mão para fazer sair a saliva. «Mas diz lá. A tua mãe é bonita, não é? Então? Vá lá, não fiques assim. Toma lá a harmónica antes que comeces para aí a chorar.»

Ela olhou a harmónica e antes de a guardar fez uma careta de nojo.
Summertime,
And the livin’ is easy
Fish are jumpin’
And the cotton is high

Your daddy’s rich
And your mamma’s good lookin’
So hush little babby
Don’t you cry

One of these mornings
You’re going to rise up and singing
Then you’ll spread your wings
And you’ll take to the sky

But till that morning
There’s a’ nothing can harm you
With daddy and mamma standing by

Summertime,
And the livin’ is easy
Fish are jumpin’
And the cotton is high

Your daddy’s rich
And your mamma’s good lookin’
So hush little babby
Don’t you cry

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Episódio IX (O juramento)

«É como lhe digo: se é para andarem a minar os artigos com trechos integrais dos livros dos estetas, mais vale deixarem a bibliografia e o leitor talvez arranje tempo e paciência para os ler na íntegra. E assim tornamo-nos todos estetas. Ouça», continuava. «Não se pede aos críticos que esclareçam os mistérios da criação, esse grande tesouro digno de levar para a cova. Como dizia o Picasso aos jornalistas, “se eu soubesse o que é a arte guardaria segredo”, mas nem por isso deixou de nos dar inúmeros exemplos. Se bem que, cá para nós que ninguém nos ouve, se um jornalistazeco qualquer deitasse a mão a esse segredo pode ter a certeza que não hesitaria em cuspi-lo mal e porcamente em troca de reconhecimento. Vendem tudo, estes tipos, até a mãe se for preciso. São uns corruptos... fazem qualquer coisa, uns imbecis… isso ou achar a última foto da Victória Beckham de mamas ao léu, para eles, é tudo o mesmo! Perdem o tempo deles e o nosso, estes críticos, desenfreados, sempre à procura da intenção, do sentido, do segredo da obra, dizem eles armados em filósofos, raios os partam! Em vez de darem ao leitor um lamiré sugestivo sobre as obras, vomitam umas míseras opiniões. E depois, como se não bastasse, consagram artistas uns pacóvios quaisquer, que ganham fama, enfim, uns pacóvios empertigados, com trejeitos de Warhol, cheios de superioridade provinciana, céus!... Como aquele tipo que tem um robô que pinta, sabe? Essa fraude! São todos… espere, não desligue… Diga-lhe que reescreva, não me interessa se tem outros artigos, quero esse pronto, nem que a vaca tussa…Estou?»
«Estou, estou.»
«Ah sim, desculpe, estávamos a falar? Ah sim, do Warhol! Esse tipo deve dar voltas na tumba cada vez que estes gajos resolvem pensar… Não vê que estou ao telefone?! Diga-lhe que se não lhe interessa o artigo mais vale desandar para o suplemento regional! Rupturas nos esgotos municipais, a populaça aos gritos, merda por todo o lado, tenho a certeza de que lhe deve interessar muito mais. O que não faltam são estagiários para ocupar o lugar desses cus preguiçosos. Estou sim? Desculpe mais uma vez. Isto é de loucos! São uns senhores estes gajos! Estou?»
«Sim, sim, estou a ouvi-lo, mas se calhar é melhor ligar-lhe noutra altura.»
«Não se preocupe, aqui nunca há boas alturas, o problema são estes tipos, em vez de fazerem o trabalho deles…e depois quem se lixa… Diga-me, como é que querem que depois escrevam qualquer coisa legível? Dizem-se eles críticos. Críticos o tanas! Estes tipos nem percebem a importância da profissão! Não percebem! São burros como as portas! Não são capazes sequer de encarar as responsabilidades da profissão! Um crítico de arte é como um médico, como eu costumo dizer, é responsável pela saúde cultural, caramba! Mas os gajos, está quieto, riem-se. Imbecis! Sabe o que eu acho? Que os críticos de arte deveriam, também eles, submeter-se a uma espécie de juramento, como o de Hipócrates, está a ver? Jurariam sobre o primeiro crítico. Resta saber qual terá sido o primeiro crítico de sempre, ou sobre quem os críticos de arte escolheriam para jurar. Pagaria para saber! Sócrates? Alguém mais remoto ainda? Ou Platão?» «O que acha disto? Estou?»
«Esse, por seu lado, não deixa de ser irónico.» respondi-lhe.
«Quem?»
«Platão. Jurar sobre alguém que andou a expulsar poetas.»
«Ah, sim… Mas quem sabe? Não me admirava! Imbecis!»
«Ou então, já que a profissão é recente, talvez fosse melhor escolher alguém contemporâneo.» continuei.
«Olhe que não brinco!» voltou. «Falo muito a sério! Isto é mesmo um assunto sério! Sim…diga-lhe que já lá vou. Estou?»
«Sim?»
«Olhe, não se importa que lhe ligue mais tarde?
«Não, não, com certeza.»
«Assim marcamos a entrevista com mais calma. Ligo-lhe antes para a semana, pode ser?»
«Sim, si…»
«Vou ver se proponho a questão do juramento àqueles imbecis. Estes gajos nem sabem quem foi Platão! Nem sabem quem é a mãe deles, quanto mais!» berrava abafado entre gargalhadas. «Bom, então fica marcado para a semana. Até breve!»
Dei-lhe umas boas tardes sumidas e antes de desligar ainda lhe ouvi rosnar "imbecis!".