sexta-feira, 26 de junho de 2009

Episodio XXI

Comecei a contar o tempo. Tinham passado apenas quinze minutos, restavam-me duas horas e três quartos.

Discuti com um amigo sobre a criação artística. Ele explorava a forma e a técnica como se estivessem separadas. Perguntou-me se eu achava que a pintura ainda oferecia propostas estéticas inovadoras. Eu respondi-lhe que sim, mesmo suspeitando que ele se referia à pintura tradicional. O meu amigo cria que a literatura se conservava ainda um meio potenciador de expressão artística. Se bem me lembrava, não há muito tempo falara-me da sua decadência, ideia essa, esgotada por demasiados destruidores sem causa. Em jeito de encerrar o assunto, disse-lhe que esperávamos pelas coisas erradas. Em todo o caso ele é mais inteligente do que eu e eu só queria beber a minha cerveja.

Por vezes imagino pessoas em países longínquos, geralmente no sul dos Estados Unidos. Lembrei-me de ter lido algures que Washington quis incendiar Nova Iorque, uma performance à laia de Nero mas com o intuito de dar cabo dos ingleses. Eu continuo a preferir a versão romana do desejo de fazer arder. Uma excentricidade com um fim feérico, essa de destruir para criar de novo. Há na História homens que não contrariam aquilo que é da sua natureza. Destruir. Destruir.

Encostei-me a um canto da parede para aliviar as costas.
Voltei a caminhar pela sala.

Aconteceu que ao treinar a escala de Dó maior, o meu cérebro deixou de ser capaz de comandar os dedos para pressionarem um Si. Tentei novamente, e outra vez, soprei ainda. Estacava no Lá e aí permanecia até todo ar se esgotar e dissipar o som. Para lá do Lá não havia mais nada. Esqueci-me para sempre, pensei. Como já estava perdida, ignorei o metrónomo e soprei qualquer coisa fera, feita de som e fúria.

Se há beleza que não questionamos é a dos torsos amputados. É algo que persiste em nós como um resíduo endurecido de consistência semelhante à da pedra. Achamos por isso beleza nos fragmentos com músculos salientes ou com pregas ritmadas. Estes fragmentos parecem estar na origem de algumas das convenções do desenho e da escultura académicos, que instituíam o corte da figura humana pelos antebraços, ou um talho longitudinal a passar pelo externo – no caso do busto –, ou até mesmo pelo pescoço. Este último pode considerar-se uma convenção com implicações mais abrangentes uma vez que não se cingiu apenas ao desenho, tendo sido também aplicada como pena. A contemporaneidade, no seguimento do modernismo, veio libertar-nos de tais regrados e agora cada um corta por onde bem entende.

Vieram dizer-me que só faltava meia hora. Fecharam a porta. Dei nova volta à sala, parei em frente do quadro e senti vontade de desenhar. Na continuação da ardósia estendia-se uma parede de corticite. Reparei que estava desenhado um pénis estereotipado cuja forma se apropriava de um pequeno vazio aberto no placar.

Um rapaz de Leste muito bonito tem estado a trabalhar nas obras do quinto andar. O rapaz chega de manhã cedo e geralmente espera o mestre-de-obras lá fora, na rua. Costuma encostar-se à porta de vidro da entrada do prédio ou sentar-se no passeio. A porteira nunca lhe abriu a porta, nem sequer no Inverno. Olha-o à transparência no interior da entrada, enquanto passa o pano pela pedra com gentil moleza. No final do dia, extingue as passadas brancas do rapaz com raiva e amoníaco.

Uma noite quis deitar-me e fechar os olhos para poder pensar. Não tinha vontade de ler nem de falar, desejava tão-só fechar os olhos e imaginar o som bravo e o brilho. Então pensei com paixão. Acho que experimentei uma espécie de prazer infantil que já tinha esquecido.

Perto do sítio onde trabalho há uma estrada muito estreita que sobe com a colina. Aí, abrando o carro e, para lá do muro baixo, olho Odivelas e Loures e sobre as cidades o grande céu. Sempre que por lá passo faço este ritual. Creio mesmo que se está a tornar num gesto de natureza supersticiosa.

Contornei a sala sempre rente à parede numa tentativa de evitar a imediata, porém inevitável, repetição do percurso.

Nas minhas pesquisas encontrei uma cópia romana de uma estátua grega de Dioniso. A cópia foi perdendo as suas extremidades até ao século XVIII, altura em que se resolveu proceder à fabricação das próteses necessárias à sua recomposição. O restauro ficou ao encargo de um italiano que, à cópia amputada, restituiu ambos os braços, a perna direita, o calcanhar e a bota da perna esquerda, o pano que pendia do lado direito, uma parcela da cabeça e as flores que a coroavam, o pescoço e a peanha.
Ficou como nova e as próteses são só ligeiramente mais luzidias do que a pedra original da cópia.

Por que razão os últimos minutos são tão dolorosos?, pensei. Sentimos uma dor mais pungente quando nos abeiramos do fim. Olhei o relógio e segui o ponteiro dos segundos com uma fascinação que rasava a loucura. Depois pensei nos sons e nas notas e como treino procurei contar o tempo certo em cada uma delas.

O meu pai telefonou-me a dizer que tinha o colesterol alto e que andava nervoso. Também me disse que ia pôr uns ferros nas costas. Tenho andado a pensar no monte de carne absurdo que é o corpo humano. Há um momento, que eu não sei bem precisar, em que, pela primeira vez, tomamos consciência do irreparável destino do nosso corpo. Destruir, destruir.

O Hemingway suicidou-se.
Acho que gosto da minha irmã como o Hemingway gostava da dele. Pelo menos, as suas palavras parecem ter-me revelado, com maior exactidão, o carácter desse afecto. Também já senti a solenidade da floresta e experimentei um sentimento quase religioso.
Em crianças somos genuinamente pagãos.

Vieram dizer-me que o tempo acabara.
Libertaram-me mas não senti o alívio que esperava.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Fenómeno genético

Verificou-se que Y tinha inscritas na memória umas paisagens que X guardara de memória.

sábado, 6 de junho de 2009