segunda-feira, 2 de julho de 2007

Episódio IX (O juramento)

«É como lhe digo: se é para andarem a minar os artigos com trechos integrais dos livros dos estetas, mais vale deixarem a bibliografia e o leitor talvez arranje tempo e paciência para os ler na íntegra. E assim tornamo-nos todos estetas. Ouça», continuava. «Não se pede aos críticos que esclareçam os mistérios da criação, esse grande tesouro digno de levar para a cova. Como dizia o Picasso aos jornalistas, “se eu soubesse o que é a arte guardaria segredo”, mas nem por isso deixou de nos dar inúmeros exemplos. Se bem que, cá para nós que ninguém nos ouve, se um jornalistazeco qualquer deitasse a mão a esse segredo pode ter a certeza que não hesitaria em cuspi-lo mal e porcamente em troca de reconhecimento. Vendem tudo, estes tipos, até a mãe se for preciso. São uns corruptos... fazem qualquer coisa, uns imbecis… isso ou achar a última foto da Victória Beckham de mamas ao léu, para eles, é tudo o mesmo! Perdem o tempo deles e o nosso, estes críticos, desenfreados, sempre à procura da intenção, do sentido, do segredo da obra, dizem eles armados em filósofos, raios os partam! Em vez de darem ao leitor um lamiré sugestivo sobre as obras, vomitam umas míseras opiniões. E depois, como se não bastasse, consagram artistas uns pacóvios quaisquer, que ganham fama, enfim, uns pacóvios empertigados, com trejeitos de Warhol, cheios de superioridade provinciana, céus!... Como aquele tipo que tem um robô que pinta, sabe? Essa fraude! São todos… espere, não desligue… Diga-lhe que reescreva, não me interessa se tem outros artigos, quero esse pronto, nem que a vaca tussa…Estou?»
«Estou, estou.»
«Ah sim, desculpe, estávamos a falar? Ah sim, do Warhol! Esse tipo deve dar voltas na tumba cada vez que estes gajos resolvem pensar… Não vê que estou ao telefone?! Diga-lhe que se não lhe interessa o artigo mais vale desandar para o suplemento regional! Rupturas nos esgotos municipais, a populaça aos gritos, merda por todo o lado, tenho a certeza de que lhe deve interessar muito mais. O que não faltam são estagiários para ocupar o lugar desses cus preguiçosos. Estou sim? Desculpe mais uma vez. Isto é de loucos! São uns senhores estes gajos! Estou?»
«Sim, sim, estou a ouvi-lo, mas se calhar é melhor ligar-lhe noutra altura.»
«Não se preocupe, aqui nunca há boas alturas, o problema são estes tipos, em vez de fazerem o trabalho deles…e depois quem se lixa… Diga-me, como é que querem que depois escrevam qualquer coisa legível? Dizem-se eles críticos. Críticos o tanas! Estes tipos nem percebem a importância da profissão! Não percebem! São burros como as portas! Não são capazes sequer de encarar as responsabilidades da profissão! Um crítico de arte é como um médico, como eu costumo dizer, é responsável pela saúde cultural, caramba! Mas os gajos, está quieto, riem-se. Imbecis! Sabe o que eu acho? Que os críticos de arte deveriam, também eles, submeter-se a uma espécie de juramento, como o de Hipócrates, está a ver? Jurariam sobre o primeiro crítico. Resta saber qual terá sido o primeiro crítico de sempre, ou sobre quem os críticos de arte escolheriam para jurar. Pagaria para saber! Sócrates? Alguém mais remoto ainda? Ou Platão?» «O que acha disto? Estou?»
«Esse, por seu lado, não deixa de ser irónico.» respondi-lhe.
«Quem?»
«Platão. Jurar sobre alguém que andou a expulsar poetas.»
«Ah, sim… Mas quem sabe? Não me admirava! Imbecis!»
«Ou então, já que a profissão é recente, talvez fosse melhor escolher alguém contemporâneo.» continuei.
«Olhe que não brinco!» voltou. «Falo muito a sério! Isto é mesmo um assunto sério! Sim…diga-lhe que já lá vou. Estou?»
«Sim?»
«Olhe, não se importa que lhe ligue mais tarde?
«Não, não, com certeza.»
«Assim marcamos a entrevista com mais calma. Ligo-lhe antes para a semana, pode ser?»
«Sim, si…»
«Vou ver se proponho a questão do juramento àqueles imbecis. Estes gajos nem sabem quem foi Platão! Nem sabem quem é a mãe deles, quanto mais!» berrava abafado entre gargalhadas. «Bom, então fica marcado para a semana. Até breve!»
Dei-lhe umas boas tardes sumidas e antes de desligar ainda lhe ouvi rosnar "imbecis!".

1 comentário:

Filipe Gouveia de Freitas disse...

Uma escrita delicada e completa. Elegante e limpa, sem ser uma elegância de salão e uma limpeza de branco imaculdao. Viva. Escrita de quem, olha, vê, ouve. E pensa!

Gostei tanto.