segunda-feira, 21 de maio de 2007

Episódio IV (Um cão sem guarda)

Faltavam trinta segundos para acabar.
Tinha-lhe doído como um uppercut, bem nas queixadas. Até cuspira sangue e engolira um dente.
«Vitória!», arremessava em ecos a plateia acompanhada pelo penúltimo tilintar.
Umas mãos sapudas esfregaram-lhe um gel nos malares cortados e nos sobrolhos inchados que lhe davam um ar de homo sapiens. As mesmas mãos de dedos gordos agarraram-lhe os ombros belos e macerados compactando-os, como que garantindo que não se desconjuntavam. A pulseira do treinador roçava-lhe fria o sangue quente; do bigode denso e amarelado soprou-lhe as palavras curtas da exortação que queriam dizer «se baixas a guarda estás morto». Sentia os braços pesados como dois toros amputados. Os cotos grandes e vermelhos pendiam-lhe das extremidades. Colocaram-lhe um balde à frente da cara para onde lançou a última cuspidela. A cabeça procurava ainda soerguer-se e já lhe enfiavam a protecção nos dentes. Elevado por uma chapada sonora nas costas o corpo balançou até ao centro ao som da única nota da campainha.
Lançou de imediato um golpe cruzado que cortou o ar e deixou o braço sem destino expondo o peito ligeiramente arqueado. Nesse momento, um arremesso de gancho embateu-lhe na têmpora esquerda atirando-o ao chão. Salpicado pelas pústulas dos golpes, o corpo espalhou-se devagar pela napa do ringue; com a cara espalmada mordeu a bochecha insuflada.
Sentiu o corpo de cão lazarento estirado ao sol numa estrada deserta. E o sol aquecia a brita cinzenta. A preguiça pesava-lhe dolorosa na fronte e num arrepio o corpo latejou ao calor.
Assistiu indiferente ao saltitar leve de umas sapatilhas brancas no seu baixo campo de visão antes de deixar que as pálpebras se lhe tombassem sobre os olhos.

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