quinta-feira, 24 de maio de 2007

Episódio V

Era um ser estranho ou talvez nem por isso. Talvez seja tudo da cabeça do autor que, com um arzinho empertigado, estende um indicador à criatura.

Este ser era então um homem com uma só paixão física e um tédio incalculável.
Era alto e por isso deixava-se curvar ligeiramente. Quando enfiava as mãos nos bolsos, os cotovelos aguçavam-se para trás forçando as costuras do sobretudo curto. Deste modo, ganhava uma posição aerodinâmica de rapace. A cabeça projectava-se para a frente no seguimento do arco onde as costas se desenhavam. Rodava-a um pouco, nunca perfazendo mais do que três quartos, a espreitar o promontório, indiferente lá de cima; entre a violência de um eminente ataque e um estado curiosamente fleumático. Por vezes dava a impressão de não se reconhecer nos seus próprios gestos, como se estranhasse a sua máscara. É que, quando temos um inteiramento profundo do nosso corpo, os gestos perdem a espontaneidade e quase que vemos o agitar pantomineiro e maquinal das cordas que pendem lá de cima.
E assim parecia este ser, tão consciencioso de si que nem os gestos o largavam um só segundo.
E isso cansava-o e aborrecia-o ainda mais.

Tinha uma cabeça lisa com o cabelo muito rente e um rosto comprido. Os olhos estavam desenhados de tal maneira que lembravam os de um felino: abriam-se em dois rasgões brilhantes e oblíquos cujo dinamismo se acentuava pelo nariz longilíneo. O conjunto da cabeça imprimia-lhe uma expressão aguçada e cortante.
Quando passava uma mulher loira de pele morena costumava olhar porque esta agitara o ar na sua passagem, mas as pernas que desciam do vestido curto desapareciam tão decididas no seu caminhar como na cabeça deste homem que permanecia imperturbável e quase sem desejos.
Porém, de felino não tinha nem a ligeireza nem a perigosidade; só a aparência de um bicho ofegante que o estuporado calor atira para o chão da savana.
Assim atirava e enterrava numa cadeira, o seu pesado aborrecimento.

Era uma figura dura e impenetrável. Outras vezes contraía um ar de pássaro violentado contra uma janela: porque era tudo azul e nela se espelhara a rota profunda da evasão do céu. Havia ocasiões em que estes acidentes lhe deixavam a cara numa tal desordem que tinha ganas de expulsar os poetas uma segunda vez.
Lia coisas complicadas mas pensava na Sicília pobre e simples cujas cores saturadas lhe feriam em onirismo os olhos oblongos.

Encostou-se à cerâmica quadriculada donde brotavam dois urinóis simetricamente sujos. Com as mãos demasiado pequenas desembrulhou uma prata já sem brilho e queimou o que restava do borrão.

Um muro branco de cal rasgava ao rés a paisagem e lá em baixo o Mediterrâneo por todo o lado. Largou-se em voo picado e rompeu o filtro molhado da superfície. Uma vez sugado pelo fundo, a fina abertura de luz selou-se lá em cima.

Alguém bateu à porta.
«Está ocupada.», bufou incomodado.

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