sexta-feira, 25 de maio de 2007

Episódio VI (Pintura pintura)

— Vou para Miami, sabe? Uma semana. Negócios! — dizia-me procurando encaixar melhor os ombros no casaco do seu fato. E nessa mímica corporal ouvi-lhe ainda: «É preciso haver alguém que negoceie, que tome conta das coisas.».
— Mas quando voltar telefone-me — continuou — porque ando há já algum tempo para comprar qualquer coisa grande. Investir um pouco, está a ver?
«Telefone-me?», indignei-me para dentro, «Em nome de quê?».
— Que tipo de coisas costuma pintar? Sabia que tenho um primo que pinta?
— Ah sim? — retribuí com falsa curiosidade. Ser-se hipócrita é ser-se educado e o contrário também se verifica.
Estava eu ainda a sofismar e já o tipo interrompia:
— Mas esse meu primo costuma dizer que faz pintura pintura. — Abrandou nas duas últimas palavras e, antes de desaparecer para ir buscar um copo, sorriu com orgulho na deixa emprestada, a ver se ela ecoava mais tempo. Pintura pintura pintura pintura.
Voltou logo no outro pé.
— É portanto um pintor pintor. — confirmei em ricochete pleno de ironia dissimulada.
Olhou-me inexpressivo com o copo a borbulhar de espumante novo. Pousou o copo enquanto procurava arrumar uma cara de pedagogo. Cheio de indulgência, largou-se em explicações sobre a pintura pintura do primo, que era, ao fim e ao cabo de pincel conceptual, uma digna raça de criação abstracta.
Apeteceu-me mandá-lo à merda, a ele e ao primo, mas não o fiz. Antes encetei:
— Então e Miami? Já esteve lá antes?
— Já sim, uma vez. A cidade até nem é muito grande mas tenho de andar de táxi para todo o lado. De qualquer modo, nunca tenho tempo para passear.
— E o que lá vai fazer ao certo?
— Contas offshore, todos os bancos as têm.
— Mmm. — ofereci com honestidade a minha expressão mais ignorante.
Numa pausa de diálogo olhámos o ambiente em volta.
— Já viu aquele tipo ali? — perguntou-me enquanto atirava discretamente com a cabeça para o alvo. — É um chato insuportável!
— Tem ar de Gioconda com bigode. — arrisquei. Ao que o meu interlocutor retribuiu com uma gargalhada maliciosa e sincera de quem sela cumplicidade.
Uma cirandagem beberricava nos copos com os cotovelos cravados nas costelas. Pareciam umas louva-a-deus polidas aos nossos olhos conjurados.

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