Ainda eu não tinha ascendido completamente com a ajuda das escadas mecânicas, já se entreviam os últimos degraus de pedra e alguns pés contra um céu em pano de fundo.
Quando emergi de feição, um vento deu logo de caras. Engalfinhei-me nas teias dos cabelos e fui esfacelar o ilíaco esquerdo na esquina de pedra do murete da saída.
Fingindo que não era nada comigo, esganei a dor à nascença, impedindo o regozijo da assistência que espera alguém à tona do metro e não esconde a avidez pelo tropeço mais encarpado, de fuças e tudo, trás na pedra.
Fui logo sentar-me no murete calcário a misturar-me com o inimigo, numa complexa metamorfose de animal amestrado e espectador.
Experimentei um ar estóico, pois a crista da anca ainda latejava, e procurei uma posição descontraída para suportar a solidão e a espera, já que tinha avanço sobre os esperados.
Mas não conseguia mais que encenar posições dignas de Sabina barroca e raptada ou aproximações prosaicas aos retratos de Dora Maar.
Como tudo saísse desconexo, revi a pose.
Ao fim de algum tempo dei comigo mais estática que o Pessoa, bronzeado de cobre e estanho, na esplanada em frente.
Porém, o vento fuçava com tal teimosia que comecei a temer uma investida de Bacon a transfigurar-me o rosto.
Desejava, a todo o custo, esquivar-me às complicações de um confronto de vanguarda.
Nisto, um casal novo pôs-se a beijocar em ruidosa pornografia, alheios à minha proximidade escandalosa. Tive que disfarçar mais uma vez improvisando uma troca de olhares com os manequins da montra em frente.
E foi graças a este acaso que lhes vi a alma de plástico.
Já estava eu aprisionada no papel de voyeur, quando o casal, para meu grande alívio, decidiu dar uma apaixonada debandada; tomou a rota dos transeuntes que se atravessavam aleatoriamente, entre mim e os manequins, quebrando a nossa plácida química.
Um homem a bambolear nos gestos veio sentar-se ao meu lado, mas apercebendo-se de que me ficaria demasiado próximo (ou quem sabe, porque me encontrava já em transfiguração), rectificou o poiso para uma distância cómoda e púdica. Atirou o saco desportivo que trazia para cima do murete, tremelicou e olhou-me com uns olhos azuis esgazeados. Eu correspondi, numa declaração aberta de adúltera, mesmo debaixo dos narizes dos meus affaire de plástico.
Tinha um bigode muito aparado e o rosto bonito e bronzeado.
O homem sentou-se e começou a esventrar o saco num frenesim de tremuras. Tirou uma lata amarela, um isqueiro e finalmente, numa atrapalhação revolvida no interior dos compartimentos, um cachimbo. Numa mímica de Parkinson, o meu companheiro lançou-se na preparação da cachimbada. Abre abre abre a tampa tampa, tira tira o tabaco tabaco tabaco tabaco tabaco, coloca coloca coloca no no no no no no cachimbo, calca, fecha fecha a tampa tampa, morde morde morde morde a boquilha, puxa puxa puxa puxa do isqueiro isqueiro.
Fizemos uma pausa a sentir o vento cheio de fôlego.
Pelo canto do olho vi de novo um gesticular. De cachimbo pendurado, o homem levava o isqueiro à boca redonda. Rolou a pedra ininterruptamente a fazer faísca. Faísca faísca faíca faísca faíca faísca faísca faísca, e o vento a soprar umas risadinhas.
Como não acendesse, o homem tirou o cachimbo da boca e durante uma breve pausa fitou os olhos dos manequins na vitrina. Depois, olhou o cachimbo sem, contudo, mostrar qualquer desalento. Antes parecia duvidar da evidência formal de cachimbo. Sob influência da suspeita quase que suspirei num desalento alheio «ceci n'est pas une pipe!».
— Oui, regarde, c'est le Chiádô! — exclamou uma francesa com sardas quando veio à superfície.
O homem voltou então a faiscar, entre tremores e fuças de vento.
E era aqui que era suposto eu entrar, disfarçada de Deus ex machina.
Mas Deus não quis. Deu-se subitamente uma pequena combustão que fez sair um fumo azulado e cheiroso. O homem engasgou-se e depois bafejou ritmado em contemplação; esgazeou um olhar aos manequins e surpreendeu-os sob o brilho falso dos reflexos da vitrina.
Os turistas continuavam em permanente devir quebrando-o, por vezes, com paragens bruscas de quem perde o fio à meada.
Com um gesto súbito e firme, o homem deu uma pancadinha com a boca do cachimbo no murete e espalhou as cinzas da contemplação; arrumou o saco e saltou para a calçada. Seguiu no bamboleio do corpo e foi mergulhar no túnel do metro desaparecendo nas entranhas da terra.
Espreitei o fundo e as línguas dos turistas ecoaram em técnica mista.
2 comentários:
Comentar para quê?!
O nível qualitivo da expressão literária neste "blog" sobe de uma forma incontrolável.
Tenho que passar mais tempo com os meus "posts".
Que tal um livro de contos a dois?
Cá estou, pois claro!
Enviar um comentário