quinta-feira, 10 de maio de 2007

Episódio III (O batom)

Um sol feroz e poeirento cobrira toda a cidade. O calor, cuja intensidade se mantivera durante todo o dia, tornava praticamente impossível distinguir a manhã da tarde.
Como uma película impermeável, a poeira assentava sobre as ruas, os prédios, as árvores dispersas. Pairava uma vaga suspeita de que tudo gritasse sob ela. Os sons chegavam cheios mas imperceptíveis.
Tudo se esfumava; o trânsito rodava lento e o sol também.
Mais à frente, o olho de um semáforo, de um vermelho mortiço, não deixava ninguém avançar. Numa fila metalizada os carros foram parando, um a seguir ao outro. As chapas estrugiam e umas ondinhas de calor elevavam-se inquietas.
Esperou. Puxou a pala cuja sombra lhe cobriu os olhos como uma mascarilha; olhou a sua imagem no espelho reduzido experimentando o rosto a três quartos; enxugou o suor que pesava sobre o lábio superior e pintou os lábios de vermelho vivo.
Depois olhou o relógio em gesto de tique: tiquetaqueavam as dezoito e trinta.
De que lhe servia, porém, o marcar do tempo se não precisava de estar em lado nenhum? Pensou que talvez pudesse ver-se livre do relógio que lhe apertava o pulso e confundir a tarde com a manhã. Uma voz que vinha de fora fez com que a sua cabeça rodasse na direcção da janela: no carro ao lado uma mulher falava animadamente numa língua estrangeira, talvez de leste. Uma mota, que passava pelo corredor de intervalo, cortou por momentos a cena.
Os carros apitaram repentinamente e provocaram um despertar abrupto: o sinal abrira, era preciso seguir. Encaixou bruscamente a primeira, pisou os pedais e o carro arrancou precedido por um espasmo.
Iria para casa.
Para onde?
Para casa.
Se não para onde?
Involuntária, seguiu o caminho habitual.

Sem comentários: