sábado, 16 de fevereiro de 2008

Episódio XII

«É uma grande vaca! Essa grande vaca estúpida e tosca!» O pianista cuspiu-se sem querer e correu a limpar-se.


A bailarina chega sempre com um quarto de hora de atraso, atravessa o estúdio na diagonal, atira com a sacola para um canto e verifica o telemóvel. Vem sempre de preto e traz uma garrafa de plástico com uma bebida azul incandescente. É baixa e condensada. Os braços pendem-se-lhe do corpo e quando caminha fazem um movimento giratório em torno do tronco. Tem umas mãos pequenas e uns dedos muito curtos, muito abertos e esticados. A bailarina tem um ar robótico e tosco. Quando se olha no espelho, experimenta umas poses severas e devolve ao seu reflexo uma forma bruta, mal talhada. Como o reflexo não é de fiar, atira-lhe, porém, expressões heróicas, às vezes até provocadoras, quando põe os olhos agudos.
O pianista, por sua vez, tem os olhos muito pequenos, tão pequenos que são quase insignificantes, como se estivessem a ser sugados pela própria cara ao ritmo de um adágio.
O pianista quando toca um tango procura acertar o compasso da música com os movimentos de cada bailarina. O corpo da bailarina tosca movimenta-se com grande rapidez. Ela é tão veloz que se antecipa ao próprio som. O pianista corre quase sempre a apanhá-la e deixa as outras fora de ritmo. Mas a bailarina tosca consegue acabar a dança antes mesmo da música se extinguir. Aperta os pés em quinta e cristaliza. O reflexo do espelho revela a sua pose altiva ou tosca. Depende de quem o olha.
O pianista derrotado contrai uma cara ligeiramente obscura e enquanto o faz calca os pedais do piano como se não soubesse para que servem. Depois curva-se e esfrega uma sujidade qualquer na última oitava.
A bailarina tosca nunca olha para o pianista. É como se ele não existisse. Ela sabe que se fizer uma pose de preparação a música há-de soar, uma vez que soa sempre que ela se põe naqueles preparos. Por isso, o pianista é como se não existisse de facto. Até porque raramente se ouve o pianista falar e quando fala é imperceptível e os seus olhos desaparecem completamente. Já aconteceu o pianista dirigir um pequeno comentário, ou pelo menos assim pareceu, à bailarina tosca. Mas a bailarina tosca não ouviu porque o pianista é imperceptível. Nesses momentos, ela estremece apenas a cabeça, como se suspeitasse qualquer coisa, mas continua inânime encostada à barra depois de a ter transformado em balcão.
Por cima do piano está pendurado um grande relógio e por volta das 20.15 o pianista é mandado embora. Mas o pianista não vai e toca ainda umas mazurcas, gira a cabeça para as bailarinas mas estas continuam pregadas ao chão com as mãos nas ancas e não arredam.
A música deixa finalmente de soar embora ninguém saiba dizer ao certo quando. E ninguém vê o pianista desaparecer porque ele é imperceptível.
As bailarinas deixam-se ficar a levantar as pernas até onde podem e a trocar olhares com os seus reflexos no espelho. Uma delas, aliás, parece perdidamente apaixonada.

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